O Anti-Imperialismo Deles e o Nosso

 

Na esquerda que promove a saída da União Europeia e do euro, perfilam-se duas tendências que devem ser separadas uma da outra desde já. Essa separação não é sectária: ela corresponde à compreensão de que o projecto político de cada uma destas tendências é objectiva e subjectivamente distinto, até mesmo antagónico, do da outra. E não há qualquer ganho de causa nem no confusionismo em que tudo equivale a tudo, nem nas tentativas artificiais de contorcer posições de parte a parte para forçar uma unidade impossível. O anti-imperialismo deles não é o nosso, e é, cumpre dizer, muito pouco crível que possa repercutir-se em alguma coisa de anti-imperialista sequer.

O ponto nodal da separação entre os dois projectos anti-imperialistas está, fundamentalmente, na adesão ou não às teses  que enredam a esquerda desde o triunfo de Dimitrov, nos anos 30. Contrapõem-se nesta refrega dois projecto: um, dos que consideram que a ruptura com a União Europeia pode e deve ser feita em aliança com as camadas intermédias e sectores da burguesia nacional, num projecto de cariz nacional-moralista em que a rejeição do imperialismo é consequência dos brios patrióticos e da adesão a imperativos ético-morais; e um outro, que considera indissociável a luta contra a União Europeia da luta geral contra o modo de produção capitalista, postulando, por isso, que só haverá ruptura com esta estrutura no âmbito de um processo revolucionário proletário que derrube a ordem burguesa.

As posições do primeiro projecto de sociedade carecem de qualquer fundamento na realidade histórica, e a sua concretização é, aliás, ou impossível, ou reaccionária. Portugal tem uma relação com o imperialismo, nos últimos 40 anos, que tem muito de comum com a que o “Che” descreve para Cuba, em 1960: «as classes dirigentes da América Latina vêem-se metidas no problema de restituir algo do que extraem ao povo de cada país, para conseguirem melhorar as suas condições gerais de vida e evitarem o rebentamento de guerras revolucionárias; nesta encruzilhada, e não querendo dar o que crêem que lhes pertence, recorreram aos Estados Unidos, para que lhes cedessem uma parte dos seus enormes lucros – ora, os Estados Unidos ofereceram condições mediante as quais não eram os seus monopólios a perder, mas sim os intermediários dos países colonizados e, definitivamente,o povo» (1). O caso português, em que a necessidade de evitar que o ascenso da luta operária desencadeado com o PREC arremetido à força com o 25 de Novembro, levou a burguesia portuguesa a correr para debaixo da asa protectora da CEE e a aceitar uma reconfiguração da economia nacional que liquidou a indústria transformadora e  a agricultura em favor dos monopólios alemães e franceses, é um decalque dos casos latino-americanos que o revolucionário argentino descreve. É tão absurdo esperar o concurso de Belmiro de Azevedo e Alexandre Soares dos Santos para combater a UE como esperar que os burgueses patriotas da Guatemala e da Bolívia apoiassem a luta emancipadora dos trabalhadores do seu país contra o imperialismo.

Esta realidade já havia sido constatada por Lenine, que, aliás, usava exactamente o exemplo histórico de Portugal para a atestar, na sua obra fundamental sobre o imperialismo: «Portugal é um Estado independente, soberano, mas na realidade há mais de duzentos anos, desde a Guerra de Sucessão de Espanha (1700-1714) que está sob protectorado da Inglaterra. A Inglaterra defendeu-o, e defendeu as possessões coloniais portuguesas, para reforçar as suas próprias posições na luta contra os seus adversários: a Espanha e a França. A Inglaterra obteve, em troca, vantagens comerciais,melhores condições para a exportação de mercadorias, sobretudo, para a exportação de capital para Portugal e as suas colónias (…) Este tipo de relações entre grandes e pequenos Estados sempre existiu mas, na época do imperialismo capitalista, tornam-se sistema geral» (2). O itálico é meu, e serve para vincar como este sistema de subordinação pacientemente aceite pelas burguesias nacionais dos pequenos Estados não é uma bizarria, uma particular falta de brio patriótico, um sinal de má índole, ou seja o que for a que se deva responder com interpelações moralistas e denúncias de vergonha e malevolência. O problema da subordinação ao imperialismo, ao contrário do que pensa o nacional-moralismo, que não consegue fazer uma análise científica, marxista, da realidade política, não tem a ver com a falta de carácter, de dignidade, de amor pela bandeira verde-rubra e pelo hino do Lopes Mendonça. Não se resolve com gestos de dignidade de portugueses íntegros e honrados que venham a assumir os postos governamentais. Não: a ruptura com o imperialismo é, só pode ser, um combate de classe contra este modo de produção. O capitalismo não recua aos «bons tempos» da concorrência pré-imperialista. Ou há subordinação ao imperialismo ou, para que haja capitalismo em Portugal sem imperialismo, a burguesia portuguesa teria de ser capaz de disputar o seu lugar na divisão internacional do trabalho com os potentados centrais da Europa, coisa que implicaria uma industrialização acelerada e uma compressão violenta do nível de vida dos trabalhadores, por forma a garantir a acumulação que não está feita e a competitividade capitalista que não existe. Não é, insiste-se, do interesse histórico da burguesia portuguesa aderir ao projecto nacional-moralista dos pseudo-anti-imperialistas que querem uma saída do euro em regime de frente patriótica que não belisca a propriedade nem o trabalho assalariado nem nada da organização social:mas se um tal projecto vingasse, ele seria a mais reaccionária experiência histórica desde o 28 de Maio.

Assim, a linha de demarcação é clara entre o projecto socialista de libertação dos trabalhadores portugueses, e o nacional-moralismo das miríficas pretensões de desvalorização cambial, reforço das exportações, e patrões patrióticos e bonzinhos a subir salários ao mesmo tempo que aumentam os seus lucros por profunda boa formação ética, amor à nação, e respeitinho pelo Governo. Com o sublinhado para a enorme gravidade do perigo que este programa constitui, pelo descaso, a anticientificidade, o sentimentalismo pequeno-burguês e o distanciamento relativamente ao marxismo que o alicerçam. Voltarei a este assunto.

 

 

(1) Che Guevara, «Sobre a Conferência de Genebra para o Comércio e o Desenvolvimento», in Textos Económicos, Lisboa: Ulmeiro, 1975.

(2) Lenine, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, Lisboa: Ed. Avante, p. 88.

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